Efeitos sobre a gravidez
Apesar dos sintomas clínicos leves, os efeitos do zika
sobre o feto podem ser sentidos em qualquer fase da gestação, como apontou
estudo publicado na revista New England Journal of Medicine, coordenado por
Patrícia Brasil (Ini/Fiocruz) e um conjunto de pesquisadores, dentre eles José
Paulo Pereira Junior. A pesquisa constatou a ocorrência de consequências graves
para o feto, incluindo insuficiência placentária, problemas no crescimento,
lesões no Sistema Nervoso Central e até mesmo a morte do bebê. Das 42 grávidas
com diagnóstico positivo para zika e acompanhadas pelo estudo, 12 tiveram algum
tipo de alteração (29%), sendo 7 delas com alguma gravidade.
Segundo o médico, uma das principais contribuições do
estudo foi ampliar o foco para além da microcefalia. “A pesquisa mostrou que
existe também a possibilidade de inflamação da placenta, em que o feto é
malnutrido e produz menos urina, o que é um fator de risco para a gestação”,
explica. De acordo com o especialista, esses tipos de complicações podem ser
beneficiadas por um tratamento em um centro de referência, diminuindo os riscos
e melhorando a condição do bebê. “Essa é uma doença nova e até então não
existiam os protocolos de assistência”, destaca, ao apontar que as
recomendações estão sendo elaboradas para melhorar o diagnóstico e o
tratamento.
Porém, José Paulo considera que é preciso ter cautela para
não causar ainda mais pânico em quem está vivenciando uma gestação. Ele destaca
que 71% das grávidas infectadas não tiveram qualquer alteração observada nos
exames de imagem, como concluiu este primeiro estudo. Ainda assim, quando se
fala em um país do tamanho do Brasil, o impacto dos números é sempre maior. “O
Brasil tem 3 milhões de partos por ano. O risco de qualquer complicação
[causada por fatores diversos] para uma grávida em geral é de 10%. Se esse
risco aumentar em 1%, já estamos falando em 30 mil partos por ano”, analisa.
Porém, ele acredita que outros estudos comparativos são necessários para
entender os efeitos e os riscos da zika sobre a gestação.
Depois de nascer
Após o nascimento da criança, os cuidados neonatais são
essenciais para o desenvolvimento futuro. Na visão da neuropediatra Tânia Saad,
do IFF/Fiocruz, a microcefalia transcende uma avaliação métrica da cabeça.
Segundo ela, a doença tem a ver com mudanças nos parâmetros de desenvolvimento
para sexo, idade e tempo de gestação. Por isso, não basta uma medida do crânio,
mas é preciso oferecer um acompanhamento integral para essas crianças. “O
sistema nervoso não está completo no nascimento do bebê, por isso os cuidados
nas primeiras horas são tão importantes”, explicou, durante aula inaugural no
Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz), em 11/03.
Ela também considera importante lidar com a expectativa das
mães de que seria possível reverter a microcefalia. “Não se trata de uma
situação cirúrgica. O crânio não cresceu porque o cérebro não se desenvolveu de
maneira adequada”, esclarece. A médica aponta que as sequelas variam de caso a
caso — podem ocorrer desde dificuldades na fala ou locomoção até crises
convulsivas frequentes, em que é necessário o uso de medicação. Segundo ela, os
cuidados nos primeiros anos de vida também ajudam a estimular o processo de
aprendizado. “Não se trata apenas de aprender a fazer contas, mas sim de
aprender a viver, quando o bebê deixa de ser um ‘peixe’ dentro da barriga da
mãe e tem que se adaptar ao seu novo ambiente de vida”. Orientações aos
profissionais de saúde sobre a estimulação precoce dessas crianças podem ser
buscadas nas diretrizes lançadas pelo Ministério da Saúde em janeiro.
Não vivemos uma epidemia de microcefalia, mas de zika
congênita — defende o infectologista Rivaldo Venâncio da Cunha, diretor da
Fiocruz Mato Grosso do Sul. “A microcefalia é uma das alterações, provavelmente
a mais grave, mas não a única”, aponta. Segundo ele, do ponto de vista da
estruturação da rede de atenção, se o foco se voltar apenas para a
microcefalia, as alterações mais leves somente serão observadas meses ou talvez
anos depois do nascimento da criança, principalmente quando ela entrar na fase
escolar. Na visão do pesquisador, a epidemia atual terá uma dimensão maior do
que a transmissão vertical de HIV/aids (de mãe para filho).
Na visão de Rivaldo, é pela atenção primária que passa o
suporte à nova demanda de saúde pública. “A rede especializada sozinha não vai
dar conta”, considera, ao apontar que as equipes de saúde da família e unidades
de atenção básica são as responsáveis pela maior parte do atendimento aos casos
de zika, dengue e chikungunya. “Para atender, precisa o profissional com
disposição e comprometimento”, acredita. Também para Celina Boga, a rede de
serviços voltada para a reabilitação e o acompanhamento de crianças especiais
já trabalha atualmente com uma demanda reprimida (mais procura do que oferta),
“mesmo sem a existência da zika”.
Outro problema para organizar a rede de atenção é a pouca
oferta de equipes multiprofissionais, sobretudo na área ambulatorial, ressalta Venâncio.
Faltam especialidades não médicas, seja no setor público ou privado, sentencia.
“Apesar de todos os avanços nos últimos anos, ainda temos um sistema de saúde
focado basicamente em duas categorias profissionais: médicos e enfermeiros —
diga-se de passagem, fundamentais, mas a assistência não se faz somente com as
duas”, avalia. Também Guilherme Ribeiro considera que a rede de cuidados não
envolve apenas a área de neurologia, mas equipes multidisciplinares, capazes de
dar assistência a essas crianças e suporte social para as mães.
“Essas crianças precisam ser acompanhadas em seu
desenvolvimento cognitivo e neuropsicomotor”, aponta Guilherme. O médico lembra
que viver com a microcefalia ou outras alterações congênitas impacta na rotina
das famílias, sendo que a maior parte delas são de baixa renda. “Às vezes é
preciso mudar de cidade para dar atenção às necessidades da criança, por falta
de serviço no interior”, comenta. Por isso ele considera que o apoio do ponto
de vista social e humano é essencial. “A zika congênita terá uma repercussão
grande para a sociedade de uma forma em geral, que precisa instalar uma rede de
assistência para garantir o cuidado dessas crianças”, considera. Segundo ele, a
questão também impacta sobre as emoções e as relações das famílias, diante de
relatos de pais que romperam o relacionamento porque não queriam vivenciar a
situação ou mesmo de crianças abandonadas em hospitais.
Por toda a vida
Em um gesto de carinho, Leonardo segura nas mãos de sua
companheira Shayna. Os dois estão na reta final de uma gravidez que trouxe
preocupações e amadurecimento, com a descoberta de alterações no bebê
provocadas pelo vírus zika. A jovem de 20 anos conta que teve a doença no
início da gestação, mas o médico que a atendeu pela primeira vez disse que
poderia ser dengue. Na época a nova doença e as alterações que ela poderia
causar em bebês ainda eram pouco comentadas. Porém, foi em um exame rotineiro
de ultrassonografia que Shayna recebeu a notícia de que algo não ia bem.
Os pais já escolheram o nome da criança, um menino, que se
chamará Arthur. Desde janeiro, eles fazem o acompanhamento no IFF. O pai, de 23
anos, deixa o trabalho de feirante para acompanhar a consulta. Para a gestante,
o apoio do companheiro é um alento: “Ele está sempre ao meu lado, tenho nele um
amigo, um pai, uma mãe”, diz. Leonardo afirma que está fazendo apenas o seu
papel, com amor. Para a hora do parto, ambos falam de um sentimento de
ansiedade, mas também dizem confiar que tudo dará certo.
Os relatos de Adriana, Tatiane e Shayna mostram que por
trás dos números da doença existem histórias de vida, expectativas, esperanças,
afetos. A atenção a essas particularidades não pode ser negligenciada pelo
sistema de saúde, apontam os especialistas ouvidos por Radis. “Como as complicações
envolvem gestantes e recém-nascidos, o impacto emocional é muito grande”,
avalia Guilherme Ribeiro. Ele compara o momento atual com duas situações de
saúde pública vivenciadas no Brasil — as epidemias de poliomielite e de
HIV/aids — e afirma que o enfrentamento desses dois contextos ajudou a
estruturar a rede de cuidados e assistência no Brasil. De acordo com José
Paulo, a melhor maneira de evitar os riscos para as gestantes é a prevenção
contra o mosquito e realizar um bom pré-natal. “É durante o acompanhamento da
gestação que ela vai ter as informações necessárias e adequá-las a seu estilo
de vida”, pontua.
“Há uma carência gigantesca de profissionais e de
informação, por isso a educação permanente em saúde é fundamental para montar a
rede de atenção”, avalia Rivaldo Venâncio. Já Celina Boga aponta que as
pesquisas científicas para descobrir os impactos do vírus são cada vez mais
necessárias, mas devem estar voltadas para melhorar as condições de vida dos
doentes. “Não podemos reduzir a discussão do zika somente aos aspectos
científicos. Precisamos falar também sobre a oferta de diagnóstico rápido e de
serviços adequados para a população”, conclui.
Autor: Luiz Felipe Stevanim
Revista Radis
Revista Radis
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