terça-feira, 24 de maio de 2016

Menos pânico, mais assistência (2ª parte)

Efeitos sobre a gravidez
Apesar dos sintomas clínicos leves, os efeitos do zika sobre o feto podem ser sentidos em qualquer fase da gestação, como apontou estudo publicado na revista New England Journal of Medicine, coordenado por Patrícia Brasil (Ini/Fiocruz) e um conjunto de pesquisadores, dentre eles José Paulo Pereira Junior. A pesquisa constatou a ocorrência de consequências graves para o feto, incluindo insuficiência placentária, problemas no crescimento, lesões no Sistema Nervoso Central e até mesmo a morte do bebê. Das 42 grávidas com diagnóstico positivo para zika e acompanhadas pelo estudo, 12 tiveram algum tipo de alteração (29%), sendo 7 delas com alguma gravidade. 

Segundo o médico, uma das principais contribuições do estudo foi ampliar o foco para além da microcefalia. “A pesquisa mostrou que existe também a possibilidade de inflamação da placenta, em que o feto é malnutrido e produz menos urina, o que é um fator de risco para a gestação”, explica. De acordo com o especialista, esses tipos de complicações podem ser beneficiadas por um tratamento em um centro de referência, diminuindo os riscos e melhorando a condição do bebê. “Essa é uma doença nova e até então não existiam os protocolos de assistência”, destaca, ao apontar que as recomendações estão sendo elaboradas para melhorar o diagnóstico e o tratamento.

Porém, José Paulo considera que é preciso ter cautela para não causar ainda mais pânico em quem está vivenciando uma gestação. Ele destaca que 71% das grávidas infectadas não tiveram qualquer alteração observada nos exames de imagem, como concluiu este primeiro estudo. Ainda assim, quando se fala em um país do tamanho do Brasil, o impacto dos números é sempre maior. “O Brasil tem 3 milhões de partos por ano. O risco de qualquer complicação [causada por fatores diversos] para uma grávida em geral é de 10%. Se esse risco aumentar em 1%, já estamos falando em 30 mil partos por ano”, analisa. Porém, ele acredita que outros estudos comparativos são necessários para entender os efeitos e os riscos da zika sobre a gestação. 

Depois de nascer
Após o nascimento da criança, os cuidados neonatais são essenciais para o desenvolvimento futuro. Na visão da neuropediatra Tânia Saad, do IFF/Fiocruz, a microcefalia transcende uma avaliação métrica da cabeça. Segundo ela, a doença tem a ver com mudanças nos parâmetros de desenvolvimento para sexo, idade e tempo de gestação. Por isso, não basta uma medida do crânio, mas é preciso oferecer um acompanhamento integral para essas crianças. “O sistema nervoso não está completo no nascimento do bebê, por isso os cuidados nas primeiras horas são tão importantes”, explicou, durante aula inaugural no Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz), em 11/03.

Ela também considera importante lidar com a expectativa das mães de que seria possível reverter a microcefalia. “Não se trata de uma situação cirúrgica. O crânio não cresceu porque o cérebro não se desenvolveu de maneira adequada”, esclarece. A médica aponta que as sequelas variam de caso a caso — podem ocorrer desde dificuldades na fala ou locomoção até crises convulsivas frequentes, em que é necessário o uso de medicação. Segundo ela, os cuidados nos primeiros anos de vida também ajudam a estimular o processo de aprendizado. “Não se trata apenas de aprender a fazer contas, mas sim de aprender a viver, quando o bebê deixa de ser um ‘peixe’ dentro da barriga da mãe e tem que se adaptar ao seu novo ambiente de vida”. Orientações aos profissionais de saúde sobre a estimulação precoce dessas crianças podem ser buscadas nas diretrizes lançadas pelo Ministério da Saúde em janeiro.

Não vivemos uma epidemia de microcefalia, mas de zika congênita — defende o infectologista Rivaldo Venâncio da Cunha, diretor da Fiocruz Mato Grosso do Sul. “A microcefalia é uma das alterações, provavelmente a mais grave, mas não a única”, aponta. Segundo ele, do ponto de vista da estruturação da rede de atenção, se o foco se voltar apenas para a microcefalia, as alterações mais leves somente serão observadas meses ou talvez anos depois do nascimento da criança, principalmente quando ela entrar na fase escolar. Na visão do pesquisador, a epidemia atual terá uma dimensão maior do que a transmissão vertical de HIV/aids (de mãe para filho). 

Ele aponta que as soluções para esse problema de saúde pública não dependem apenas do setor da saúde, mas exigem a integração com outras políticas públicas. “O cuidado demanda integração entre saúde e assistência social”, destaca. “Quantas famílias já foram ou serão vítimas de zika congênita? Quantas crianças já têm ou ainda terão algum tipo de alteração? Quantos pais e mães necessitarão de apoio da assistência social para ter acesso à rede de serviços?”, questionou, durante debate na Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz), em 15/03. Segundo ele, a dificuldade de acesso é uma realidade no Nordeste, região onde se encontra a maior parte dos casos notificados de microcefalia (5.270 registros ou 79% do total). “Desde a organização do passe de ônibus até a hospedagem nos centros onde estão concentrados os serviços, tudo isso precisa ser urgentemente dimensionado”, analisa.

Na visão de Rivaldo, é pela atenção primária que passa o suporte à nova demanda de saúde pública. “A rede especializada sozinha não vai dar conta”, considera, ao apontar que as equipes de saúde da família e unidades de atenção básica são as responsáveis pela maior parte do atendimento aos casos de zika, dengue e chikungunya. “Para atender, precisa o profissional com disposição e comprometimento”, acredita. Também para Celina Boga, a rede de serviços voltada para a reabilitação e o acompanhamento de crianças especiais já trabalha atualmente com uma demanda reprimida (mais procura do que oferta), “mesmo sem a existência da zika”.

Outro problema para organizar a rede de atenção é a pouca oferta de equipes multiprofissionais, sobretudo na área ambulatorial, ressalta Venâncio. Faltam especialidades não médicas, seja no setor público ou privado, sentencia. “Apesar de todos os avanços nos últimos anos, ainda temos um sistema de saúde focado basicamente em duas categorias profissionais: médicos e enfermeiros — diga-se de passagem, fundamentais, mas a assistência não se faz somente com as duas”, avalia. Também Guilherme Ribeiro considera que a rede de cuidados não envolve apenas a área de neurologia, mas equipes multidisciplinares, capazes de dar assistência a essas crianças e suporte social para as mães.

“Essas crianças precisam ser acompanhadas em seu desenvolvimento cognitivo e neuropsicomotor”, aponta Guilherme. O médico lembra que viver com a microcefalia ou outras alterações congênitas impacta na rotina das famílias, sendo que a maior parte delas são de baixa renda. “Às vezes é preciso mudar de cidade para dar atenção às necessidades da criança, por falta de serviço no interior”, comenta. Por isso ele considera que o apoio do ponto de vista social e humano é essencial. “A zika congênita terá uma repercussão grande para a sociedade de uma forma em geral, que precisa instalar uma rede de assistência para garantir o cuidado dessas crianças”, considera. Segundo ele, a questão também impacta sobre as emoções e as relações das famílias, diante de relatos de pais que romperam o relacionamento porque não queriam vivenciar a situação ou mesmo de crianças abandonadas em hospitais.

Por toda a vida
Em um gesto de carinho, Leonardo segura nas mãos de sua companheira Shayna. Os dois estão na reta final de uma gravidez que trouxe preocupações e amadurecimento, com a descoberta de alterações no bebê provocadas pelo vírus zika. A jovem de 20 anos conta que teve a doença no início da gestação, mas o médico que a atendeu pela primeira vez disse que poderia ser dengue. Na época a nova doença e as alterações que ela poderia causar em bebês ainda eram pouco comentadas. Porém, foi em um exame rotineiro de ultrassonografia que Shayna recebeu a notícia de que algo não ia bem.

Os pais já escolheram o nome da criança, um menino, que se chamará Arthur. Desde janeiro, eles fazem o acompanhamento no IFF. O pai, de 23 anos, deixa o trabalho de feirante para acompanhar a consulta. Para a gestante, o apoio do companheiro é um alento: “Ele está sempre ao meu lado, tenho nele um amigo, um pai, uma mãe”, diz. Leonardo afirma que está fazendo apenas o seu papel, com amor. Para a hora do parto, ambos falam de um sentimento de ansiedade, mas também dizem confiar que tudo dará certo.

Os relatos de Adriana, Tatiane e Shayna mostram que por trás dos números da doença existem histórias de vida, expectativas, esperanças, afetos. A atenção a essas particularidades não pode ser negligenciada pelo sistema de saúde, apontam os especialistas ouvidos por Radis. “Como as complicações envolvem gestantes e recém-nascidos, o impacto emocional é muito grande”, avalia Guilherme Ribeiro. Ele compara o momento atual com duas situações de saúde pública vivenciadas no Brasil — as epidemias de poliomielite e de HIV/aids — e afirma que o enfrentamento desses dois contextos ajudou a estruturar a rede de cuidados e assistência no Brasil. De acordo com José Paulo, a melhor maneira de evitar os riscos para as gestantes é a prevenção contra o mosquito e realizar um bom pré-natal. “É durante o acompanhamento da gestação que ela vai ter as informações necessárias e adequá-las a seu estilo de vida”, pontua.

“Há uma carência gigantesca de profissionais e de informação, por isso a educação permanente em saúde é fundamental para montar a rede de atenção”, avalia Rivaldo Venâncio. Já Celina Boga aponta que as pesquisas científicas para descobrir os impactos do vírus são cada vez mais necessárias, mas devem estar voltadas para melhorar as condições de vida dos doentes. “Não podemos reduzir a discussão do zika somente aos aspectos científicos. Precisamos falar também sobre a oferta de diagnóstico rápido e de serviços adequados para a população”, conclui.


Autor:  Luiz Felipe Stevanim
Revista Radis

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